qMuito
escuto em ambientes informais, entre colegas em reuniões, conversas de pátio,
frases do tipo “esse menino não sabe ler”, “essa menina não sabe escrever”, e,
no meio de cada hiato, olhares curiosos direcionados aos professores de
português. No calor da discussão, aparece aquele clichê: “o problema está na
base”. E eu penso... de que base essa máxima se refere? A base, para mim é toda
a escola, todo o percurso do educando até a sua formação como indivíduo
atuante.
A consciência da liberdade e o preparo
do indivíduo para o mundo partindo da escola é um conceito que Paulo Freire
apontou e que centenas de acadêmicos vêm teorizando em monografias. Mas do
conceito para a prática há o oceano da ignorância, do descompromisso e da falta
de critérios de muitos profissionais da educação. Fica mais fácil apontar a tal
“base” como vilã, a terrorista da má formação escolar, eximindo-se da própria
culpa, como se pertencesse a um nível superior do ensino. Cabe, neste momento,
lembrar a professora Magda Soares, no livro Alfabetização – Brasília:
MEC/INEP/COMPED, 2000 – : “É preciso promover a reflexão sobre a crítica para
que ela seja compreendida nos usos e nas funções sociais presentes no
cotidiano”.
Soares é ótima quando, na vastidão dos
seus textos, discute a diferença entre alfabetização e letramento. A
alfabetização é o primeiro encontro com a comunicação escrita; é a formação da
identidade do potencial escritor. Um processo germinal, mecânico, motor. É a
proposta de uma habilidade que será desenvolvida nas fases seguintes.
Letramento já é o processo social, a aquisição da competência linguística como
ferramenta de transformação. É na fase de letramento – e essa não se dá em
tempo determinado – que a língua se torna veículo de valores, preconceitos,
credo, utopias, manifestos e propagação de correntes ideológicas.
Então, o pai, o professor, o amigo que
escutar alguém dizer que “fulano não sabe ler”, deve levar em conta que “ler” é
uma habilidade que pode demorar ciclos e até anos para que se tenha o domínio.
Há pessoas que são escolarizadas, mas ainda não são letradas, sabia? Decifrar
sílabas, palavras, frases, ter boa postura de voz e pronunciar belissimamente
as palavras não tem nada a ver com saber ler. Leitor é aquele que entende o que
leu, percebeu as entrelinhas, os jogos intertextuais, as mensagens
subliminares. Quem, no começo deste texto, disse que aquele menino não sabia
ler, talvez ele próprio também não seja tão leitor assim.